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sexta-feira, 10 de abril de 2009

O Gozador

Aos doze anos de idade, eu me achava imensamente feliz, acreditando que todas as pessoas fossem também felizes. A minha família, especialmente, achava-se bastante feliz, aquele ano. Afinal havíamos conseguido a nossa casa própria. Era uma pequena casa de conjunto residencial, mas que nos parecia um palácio. Tudo bem que ela só viria a ser nossa daí a vinte e cinco anos, mas, ainda assim, já nos sentíamos proprietários. Principalmente minha mãe, que sonhara com ela por quase toda a sua vida.
Minha mãe era uma mulher forte e rígida em seus princípios e muito severa quando preciso, mas muito generosa com quantos precisassem dela. O fato é que, por ser uma criança muito feliz, eu acreditava que todas as brincadeiras que fizesse seriam encaradas com bom humor por todas as pessoas. O problema é que eu exagerava um pouco e, aqui pra nós, algumas pessoas são muito sisudas mesmo!
Certa vez, um rapaz chamado Manoel, resolveu rapar a cabeça. Quando o vi com a cabeça pelada, e ainda por cima em forma de ferro de passar, não me contive: “E aí Manoel, passou no vestibular pra burro?”, interpelei-o. Não preciso contar que tive que correr muito para chegar em casa são e salvo. Depois de ser obrigado por minha a mãe a pedir desculpas a Manoel, levei uma grande surra pra aprender a não desrespeitar as pessoas. “Mas mãe, não foi desrespeito, eu só estava brincando com ele”. “Brincadeira?”, irritou-se ela. “Queria te ver dizer isso se ele te pegasse primeiro que eu”.
Nessa mesma noite, eu a ouviria dizendo para D. Maria José, sua melhor amiga e vizinha: “Maria José minha filha, não sei mais o que faço com esse menino. Chamou de burro um homem de barba na cara. A sorte do ordinário é correr feito um cavalo”. “Menina, eu vi!”, respondeu D. Maria José. “O rapaz estava furioso. Se ele alcançasse Dilman, eu não sei o que seria do coitado”.
E os dias se passavam assim, eu com minha felicidade exagerada, minha mãe com sua preocupação bastante justificada e os nossos vizinhos me dando motivos variados para que eu criasse muitas piadas.
Um dia, estava brincando de bicicleta quando passou um senhor fazendo o sinal da cruz incessantemente. Parei a bicicleta e perguntei inocentemente: “Vai pra missa Seu Benzão?”, era assim que a turma o chamava, quando ele não estava vendo. “Seu Benzão é mãe!”, rebateu ele, deixando-me perplexo com sua fúria. D. Maria José que conversava com D. Rosa – outra vizinha – teve um acesso de riso e, disfarçando, entrou rapidamente em casa, para não parecer que debochava do tal benzedor.
Pois bem, estávamos, de outra feita, eu e meus amigos – Pingo, César e Nilton, filhos de D. Maria José; Itinho, Marilton, Bugá e Buguelo, filhos de D. Rosa; e Minhoquídeas, filho de D. Rita – encostado na porta da igreja católica esperando que a chuva passasse para recomeçarmos o baba. De repente, vindo sei lá de onde, aparece Paulo, um rapaz que por ser muito magro, a turma apelidou secretamente de Paulo Palito. Ele vinha numa carreira desengonçada, balançando o corpo de um lado para o outro, sem qualquer motivo lógico.
Concordo que eu não devia ter todos os parafusos na cabeça. Paulo tinha dezenove anos e eu continuava com meus doze e, quando vi, já havia gritado a plenos pulmões: “E aí Paulo Palito, tá tentando driblar as gotas de chuva?” Ele fingiu não ouvir e prosseguiu a dançar sob os pingos de água. A chuva passou e recomeçamos o jogo. Subitamente, fui agarrado pelas costas e ouvi a voz de Paulo, bem próximo ao meu ouvido: “Quem é Paulo Palito?”
As minhas escusas não foram aceitas e eu me vi conduzido para o lado da igreja, onde havia uma enorme moita de jurubeba. Com facilidade, fui arremessado de costas sobre a moita e senti dezenas de espinhos rasgarem a minha carne, em todas as partes do corpo. “Diga quem é palito agora, diga, seu v!”
Eu tentava sair daquele emaranhado de folhas e espinhos, mas a cada movimento que fazia, sentia uma nova perfuração e um filete de sangue corria do ferimento. Logo, eram tantos que comecei a chorar, pensando que ia morrer. Bárbara, minha sobrinha, estava por ali e quando me viu naquela situação, correu alucinada para casa, gritando: “Estão matando Dilman!” Quando minha mãe se aproximou, eu já havia desistido de tentar me livrar dos espinhos. “Mãe, socorro mãe! Acho que vou morrer!”, implorei, já me sentindo esperançoso com a sua chegada.
Ela me pegou por um dos braços e num puxão rápido me arrancou do meio das jurubebas. O susto que levei foi tão grande que nem cheguei a sentir dor.
“Quem fez isso com ele?”, perguntou olhando ao redor. “Foi esse rapaz aí, mãe”, respondeu Bárbara, apontando para Paulo Pali... para Paulo. É melhor não arriscar de novo. Minha mãe se encaminhou na direção do rapaz: “Por que você fez isso com ele?”, ela quis saber. “Ele me chamou de Paulo Palito...”, ele respondeu, desajeitado. “Quantos anos você tem?”, ela o interrompeu. “Dezenove”. “Você sabe quantos anos ele tem?”, ela lhe perguntou, mas quando Paulo tentou responder, levou uma bofetada que o seu rosto chegou a virar para as costas. Imediatamente, D. Maria José, D. Rosa e outras pessoas que assistiram ao caso, posicionaram-se ao lado de minha mãe, tentando protegê-la de. Assustado, Paulo fugiu dali. Minha mãe virou-se pra mim e eu gelei. “Vamos pra casa. Vou tirar cada um desses espinhos e lhe dar um banho de álcool que é para os ferimentos não infeccionarem. Quem sabe assim você aprende a lição”.
Graças a essa lição, aprendi a não mexer com as pessoas por elas agirem de alguma forma que, para mim, possa parecer estranha. Nunca mais voltei a agir desse jeito... Quer dizer, houve uma vez em que fui demitido por, ao chegar à empresa em que trabalhava, encontrar um dos diretores usando uma peruca que caía de lado. Assim que o vi falei... Mas isso já outra história. Quem sabe de outra vez eu conte.


No último dia do ano de 2008, minha mãe nos deixou. Uso esta oportunidade para homenageá-la e reafirmar o meu amor e saudade.