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domingo, 3 de agosto de 2008

O Mendigo, o pinguim e a Justiça

Um mendigo sujo e faminto arrasta seu fardo de papelões pelas praias vazias do Rio Vermelho, num friorento fim de tarde em Salvador. Desanimado, joga-se ao chão e pensa em se deixar levar pelas gostosas águas soteropolitanas. “É doce morrer no mar!”, pensa baixinho, lembrando a antiga canção. De repente, um corpo estranho aparece nadando desengonçado em meio às marolas, enchendo de esperança o faminto catador de papelão. É um pinguim!
Apressado, o homem entra na água e pega o animal com facilidade. Leva-o para junto dos seus objetos e passa a usar alguns papelões para montar uma fogueira. Imediatamente, improvisa uma trempe com algumas pedras, torce o pescoço do animal que, debilitado, não pode se defender e o põe para assar.
Mas já disse algum filósofo que “dia de muito é véspera de nada”. Está o coitado feliz com a fartura do almoço que se avizinha, quando gritos estrépitos de duas senhoras melindrosas chegam aos seus ouvidos. “Assassino! Assassino! Você matou um pinguim! Chamem o IBAMA!”
O miserável faminto assusta-se ao perceber as mulheres partirem em sua direção e tenta fugir, levando consigo o animal chamuscado e o fardo de papelão. Surgido de algum lugar, um homem fardado, com arma em punho, grita-lhe: “Pare se não quiser morrer!”, e corre atrás dele.
O mendigo para. “O senhor está preso por crime ecológico”, diz o da farda. “Mas eu não cometi crime algum, moço. Eu só estava querendo comer a comida mandada por Deus pra matar a minha fome”, responde o coitado, sem entender ao certo o que se passa. “E pinguim lá é comida, seu animal?”, ofende-o o policial. “Pro senhor pode não ser, mas pra mim era a única comida que eu ia ter comido nos últimos três dias”, responde o mendigo, com cara de aborrecido. “Mas isso é um pinguim, seu ignorante!”
“Mas, moço, pinguim é um bicho como outro qualquer. A gente não mata galinha pra comer? Então, por que eu não posso comer pinguim? Pra falar a verdade, lá na cidade de onde eu venho, até hoje, eles matam boi com uma machadada na cabeça e ninguém protesta por isso, não”, ele tenta convencer o militar. “Mas pinguim não pode e o senhor tá preso e pronto”.
Apavorado, o maltrapilho sai correndo. Surpreso, o fardado aponta-lhe a arma e o alveja na nuca. O comedor de pinguins cai fulminado no chão. Em poucos minutos, as duas senhoras melindrosas dão entrevista a uma emissora de TV, tendo já uma pequena multidão em volta do falecido.
“O pobre coitado não teve como se defender. O assassino atirou pelas costas. Onde vamos parar meu Deus!”, dizia uma das duas senhoras.
Em meio à multidão, observo o mendigo com a cara enfiada na areia enquanto um pinguim morto e chamuscado parece querer fugir de sua mão tenaz. Uma pergunta passa a me incomodar: qual o motivo dos pinguins terem mais prestígio que as galinhas? Na verdade, nós nos acostumamos a fazer distinção entre coisas e seres, mas, se bem avaliarmos, perceberemos não se distinguirem. Hoje as nossas leis precisam se dividir na proteção dos negros, das mulheres, das crianças e dos homossexuais – não seríamos todos iguais? –, quando o que realmente precisa haver é o cumprimento de uma lei geral, abraçando a todos como semelhantes e merecedores de proteção e justiça. Infelizmente, como a “justiça” sempre pende a favor do mais forte, criamos leis para fortalecer as minorias e de alguma forma fazer-lhes a tal justiça. Assim surgem o Estatuto da Criança e do Adolescente, as leis em defesa dos negros, a Lei Maria da Penha, as leis de proteção aos homossexuais, “os estatutos de proteção aos pinguins e aos tubarões” e tantas outras. Entretanto, apesar de todas elas, mendigos continuam a dormir debaixo das marquises e crianças continuam a pedir esmolas nas sinaleiras das cidades. Negros são destratados, mulheres espancadas e homossexuais agredidos. Enquanto isso, nossos políticos se locupletam, nossos advogados compram e vendem liberdade e nossa imprensa insiste em formar opinião. E as leis criadas para proteger as minorias, passados os dias de empolgação, cairão no esquecimento e, como todas as outras, perderão sua valia.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

O nascimento de João-ninguém


Quando tento lembrar os primeiros dias da minha infância, o mais longínquo que alcanço é o dia em que Gegê, meu irmão mais velho, voltou de São Paulo. A impressão que tenho é que foi naquela manhã, ao acordar, que a minha vida começou.
Gegê é, na verdade, o apelido carinhoso que alguém criou para quebrar o peso da união dos dois nomes que foram usados para batizar o primogênito de minha mãe. Adolfo Getúlio é, portanto, a junção destes nomes. É possível um nome desses?!
Pois bem, Gegê, ou Adolfo Getúlio, já morava em São Paulo antes mesmo de eu nascer e voltava para casa na madrugada desse primeiro dia das minhas lembranças. Eu já contava, então, quatro longos anos de vida e experiências imemoráveis, como já ficou claro.
Pois bem, naquela manhã, ao acordar, vozes confusas vindas da cozinha chegavam ao meu ouvido, irritando-me por me impedirem de voltar a dormir. Aos poucos, as vozes foram ficando mais nítidas e pude perceber que dentre elas havia uma que eu não conhecia. A curiosidade acabou por me despertar completamente.
Do quarto – que para mim era muito grande, úmido e escuro, – ainda deitado, eu ouvia atento a cada palavra que diziam na cozinha, numa tentativa inútil de descobrir a quem pertencia àquela voz grave e com sotaque estranho. De repente a voz pareceu crescer de volume e, quando já estava à porta do meu quarto, entendi que vinha em minha direção. Assustado, virei para o canto e fingi dormir. “Acorda moleque, passarinho que não deve nada a ninguém já está cantando e você ainda dorme?”, falou a voz, já passando a mão nos meus cabelos.
Mais assustado ainda, abri os olhos e vi aquele rosto barbudo que me sorria. “Levanta, meu! Vamos tomar café juntos”, disse o barbudo enquanto saía do quarto. “E Gracinha, mãe? Cadê?”, perguntou já de volta à cozinha.
Eu já estava decidido a acabar com aquele sonho estranho quando uma imensa confusão se formou em minha cabeça ao ouvi-lo falar com minha mãe como se também fosse mãe dele. “Tá dormindo no quarto lá do fundo”, minha mãe respondeu.
“Gracinha, ô Gracinha, acorda garota! Ô povo que dorme! Bem que lá em São Paulo se diz que baiano é preguiçoso”, ele dizia se movendo por todos os cômodos da casa. “Vem tomar café, Gê. Já está tudo na mesa”, disse minha mãe e eu finalmente entendi. Era Gegê que havia voltado. Levantei da cama num pulo e corri para a cozinha. Ao chegar à porta do quarto, porém, estanquei. O estranho, que podia ser Gegê, entrava no outro quarto: “Primeiro, vou acordar Geovane, mãe”, ele dizia.
“Gegê! Você voltou!”, a voz efusiva de Gracinha encerrava com as minhas dúvidas. “Menina, você já está uma moça! Quando eu saí daqui...”, uma conversa prolongada se iniciava e tudo indicava ser realmente Gegê! Mas aquele homem era barbudo, não podia ser Gegê. Voltei e me sentei na cama. Eu precisava ouvir mais um pouco.
Estórias de lugares distantes eram contadas enquanto a família tomava café. Eu saí do quarto e parei na sala para ouvir mais um pouco. “Eu queria ter ido com você! Queria conhecer São Paulo”, dizia Geovane, deixando escapar certa melancolia na voz. “Um dia você vai conhecer. Agora, o que você tem que fazer é estudar. Na época certa você conhece São Paulo. Estude pra um dia você conhecer o mundo todo!”
Criando coragem, andei até a porta da cozinha e me escondi atrás da parede. Dali, eu podia ver a imensidão que era aquela cozinha. Do meu lado esquerdo, ao fundo, uma pia de cimento cheia de panelas. Ainda do lado esquerdo, mas, próximo à porta, uma estante cheia de pratos e talheres. À minha frente, uma mesa com quatro cadeiras onde sentavam meu pai, minha mãe, Gegê e Gracinha. Geovane viria depois e se recostaria junto à pia, ao lado do porrão de água.
Minha mãe tocou a mão de Gegê e com um gesto de rosto apontou em minha direção. Ele se virou e eu gelei. “Dilman! Como você está grande, meu!”, falou enquanto me pegava no colo e me dava muitos beijos. Num lance repentino, jogou-me para cima e eu pensei que ia me espatifar no chão. Quando me agarrou novamente voltou a me dar mais beijos.
“Vem Gê, termina o café”, falou meu pai que sempre fora resumido em suas palavras e que nesse momento morria de medo de me ver jogado mais uma vez para o alto. Gegê voltou para a mesa, colocando-me no colo. Ali eu tomei o meu primeiro café em família. E talvez este seja um dos motivos de eu pensar que foi naquela manhã que João-ninguém nasceu.
Mais tarde, na hora de abrir as malas, presentes foram distribuídos por todos. Não lembro o que os outros ganharam, mas jamais me esqueci da minha bola. Minha primeira bola! Era uma bola de plástico, maior que uma melancia. Tinha uma cor verde-azulada e era toda manchada de verde, cinza e marrom claro. Em um ponto, o plástico se concentrava, formando um umbigo que, creio eu, ser ali onde a máquina do fabricante a fechou. Corri para o quintal e comecei a dar-lhe chutes e a gritar gol. E foram tantos os gols e os gritos que não me lembro de mais qualquer conversa daquela manhã.
Eu ainda brincava com a bola quando Daida, que é o meu irmão Paulo, chegou. Ele havia dormido na casa de Lourdes, mulher que viria a ser a sua esposa por muitos anos. Brincou um pouco de bola comigo e entrou ao saber que Gegê havia retornado. Os dois se abraçaram muito e eu ficava olhando tudo aquilo como se o mundo fosse o melhor lugar para se estar.