Existem pessoas para quem a alma não cabe no corpo. Estes, os chamados
artistas, não conseguem encontrar-se aprisionados por padrões cognitivos ou
intelectuais tão comuns à maioria da população. Para eles, os conceitos
massificados se perdem em meio a surtos criativos e as práticas comportamentais
ganham novas nuances e performances. Por isso existem tantos excêntricos no
meio artístico.
Antonio Pastori é assim, um artista que escapa à própria capacidade
corporal e transborda em poemas imagéticos – ou em imagens poéticas, como
queiram – dando vida às suas ideias e delas produzindo Arte. E esta
característica sua – misturar poesia com audiovisual, teimando em mostrar que a
poesia é imagem e a imagem é poesia – não se revela ao acaso. É um processo
planejado e executado custosamente, ao qual ele se dedica em profusão,
desligando-se rotineiramente das demais atividades que o absorvem para
mergulhar “no mundo das ideias”, como afirma Ednilson Motta Pará, Diretor de
Programas Especiais da TVE, seu grande amigo e colega de profissão. Aliás, Pará
não se esquiva em afirmar: “Pastori é um morador do platônico mundo das ideias.
Em sua obra, as certezas não existem, pois, segundo ele, toda moeda tem duas
faces.”
Mas, como Pastori não cabe em si mesmo, não poderia ser unicamente
artista. Há um jornalista brigando por espaço dentro desse corpo já abarrotado
de imaginações. Tendo sido apresentador de programas esportivos na TV Itapuã,
na TVE e na Band, foi coordenador e apresentador da revista eletrônica TVE
Revista, na TVE, e hoje se dedica a fazer um mapeamento cultural das cidades
históricas da Bahia.
Este, porém, o comunicador, confessa-se cativo de uma paixão: o
recôncavo baiano. Os que o conhecem de perto afirmam, sem medo de errar, haver
uma profunda miscigenação entre a sua alma e a alma do recôncavo. Não é à toa
que, ao ser questionado sobre este tema, responda apressadamente: “Costumo
dizer e sentir que moro no recôncavo da alma.” A quantidade de documentários
produzidos – Recôncavo na Palma da Mão, Casa de Santo, Tesão e Fé, Maragós, No
Ilê das Máscaras, e, o ainda em processo de finalização, Aldeia – sobre este
tema mostra haver realmente essa simpatia mútua, como se uma troca alimentícia
houvesse entre os dois. Observando-se mais amiúde, percebe-se mesmo haver nele
uma grande necessidade de retribuir, com o seu trabalho, o alimento espiritual
que recebe da região. “Lá, o vento faz a curva mesmo e pássaros são os donos
das trilhas. O povo do lugar tem responsabilidade na preservação desse
espírito”, afirma, repetindo o gesto costumeiro de cofiar o cavanhaque enquanto
reflete.
Mas há ainda o Pastori indivíduo, cidadão com RG, residente de
megalópole pelos 45 anos de sua existência. Esse, diferentemente dos demais,
consegue ser amado e odiado concomitantemente pelos que o cercam. Apreciador de
bons vinhos, sendo o chileno Concha y Toro o preferido, aproveita os momentos
de degustação para produzir seus poemas, escrevendo-os em guardanapos de papel
nos bares por onde se inspira. Sobre esse prazer, ele diz:
“Manchados com vinho chileno, nas varandas do Rio Vermelho em suspensão. Muitas
ideias, poemas, cenas. Além das cartas de amor, o que seria do mundo sem os
guardanapos de papel nas madrugadas? O que seria da boa música popular sem os
guardanapos ao lado dos violões em bares à meia luz?”
Certa feita, numa
gravação do Terno de Reis para a TVE, na cidade de Senhor do Bonfim, os dançarinos
aguardavam já paramentados com as indumentárias representativas de cada
personagem, quando uma forte chuva começou a cair, impedindo a realização do
trabalho. Pastori não se abalou. Pegou uma garrafa de Macieira, um pacote de
Malboro, caminhou com seu gingado malemolente para a rua e, juntamente com
Ednilson Mota, bebeu e dançou a Dança da Chuva. Em poucos minutos o céu estava
limpo e as gravações foram feitas. Recolhidos os equipamentos, a chuva voltou a
cair e ele festejou achando-se o responsável pela estiagem temporária.
Outra
coisa que não cabe no corpo de Pastori é o ego. Como todo artista, ele se
entende superior a todas as mesmices. Até o tempo tem que se dobrar a suas
vontades, deixando de ser controlado pelo relógio ou sequer tendo a ver com a
rotação e translação da terra. Nele, o tempo limita-se exclusivamente à sua
capacidade de produzir. “Não consigo entender como alguém pode abrir tantas
frentes de trabalho ao mesmo tempo”, diz o gerente de operações da TVE, José
Carlos Oliveira. “Mas ele tem um poder de cativar através da oratória que é
inigualável. Graças a esse dom, ele conquista as pessoas em um simples
bate-papo. Por causa do trabalho, nós tivemos muitas brigas. Brigas sérias”, continua Oliveira. “Certa vez, ele chegou ao estúdio com o
programa já indo ao ar e trazendo o material gravado em mídia inadequada. Foi
um corre-corre terrível. Tivemos de fazer a edição por blocos, enquanto um ia
ao ar, nós aprontávamos o seguinte”, um breve sorriso interrompe o discurso.
Depois de um leve balançar a cabeça de lado, Oliveira conclui: “no final do
programa, tudo havia acabado bem, mas eu estava muito aborrecido. Ele
simplesmente veio em minha direção, deu-me um forte abraço e comemorou o
resultado do trabalho apresentado. Eu relaxei e retribui o abraço... Até hoje
me pergunto: como alguém pode ficar irritado com um cara desses?”