Páginas

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Lança Cravada no Vazio

Ouvi quando disseram que meu amor havia morrido. Em desespero corri àquele monte e o encontrei agonizante. Docilmente, o meu amor morria à minha frente! A dor que me envolveu foi tanta que não resisti e também vim a falecer. Três dias depois, quando me acordou, sua voz era a mais severa que um dia ouvi. Ele me falou:
“O ímpio não tem paz!”
Entendi o que ele dizia e me apiedei de seus assassinos.  Eles mataram o meu amor por ser ele a esperança que não têm. Vivem em guerra contra o meu amor, por ser ele o bálsamo que não possuem.
Estribados em suas próprias astúcias, supõem ter o sangue anilado devido à intelectualidade que possuem ou aos dividendos que amealham. Mas quando suas mulheres os trocam por maridos melhores, quando seus filhos – decepcionados com o vazio dos seus discursos filosóficos cheios de palavras buscadas e rebuscadas nos dicionários inúteis – esquecem-se deles, quando seus amigos sorriem amarelo da soberba e arrogância que transbordam no andar, eles se entregam ao vício, pois só o álcool, a fumaça ou pó podem lhes aliviar das dores de uma labuta inútil e solitária.
Encerrado o efeito das drogas, porém, enfurecidos pela repetitiva realidade que os calcina, eles cravam mais fundo a lança do ódio entre as costelas do meu amor. É que o desesperador vazio da falta de esperança leva-os à necessidade de vingança.
Então, com um sorriso meigo no rosto, meu amor me leva pela mão e andamos assim por um paraíso real chamado sossego.
E os assassinos ficam ali, no topo daquele monte, repetindo o ato de lhe cravar uma lança  entre as costelas, sem sequer perceberem que há muito o meu amor venceu aquela colina.

domingo, 16 de março de 2014

AFAZERES


O sonido estridente do despertador do celular de minha mulher toca precisamente às cinco da manhã. Ela se apressa em levantar, imbuída das responsabilidades do dia, mas eu ainda tenho mais vinte minutos. Viro de lado e tento dormir mais um pouco. O peso da sonolência começa a levar minha mente para o mundo no qual tanto gosto de viajar e já estou quase nele quando o canto forte de um bem-te-vi me traz de volta para a clarividência desse dia que nasce. Só o canto dos pássaros é mais agradável que sonhar.
Ele canta de novo e eu percebo que está perto da janela do meu quarto, levanto apressado, mas, refletindo em sua fuga com a abertura das cortinas, contenho-me e me satisfaço com seus sons. É um canto simples, com pouquíssimas variações, mas rico de intensidade e mavioso encanto. Aproximo o ouvido da vidraça, quero ouvi-lo melhor, e ele canta mais umas quatro ou cinco vezes até silenciar sem ter uma companheira que lhe dê resposta.
Espero por alguns minutos até ter a certeza de que já se foi. Abro a janela, não o vejo. O seu trinado se faz ouvir mais uma vez, mas bem ao longe, já bem na saudade, quem sabe à janela de outro admirador de seus gorjeios.
Fecho a cortina sorridente e vou para os meus afazeres com a certeza de que esse será um ótimo dia.