Um
mendigo sujo e faminto arrasta seu fardo de papelões pelas praias vazias do Rio
Vermelho, num friorento fim de tarde em Salvador. Desanimado, joga-se ao chão e
pensa em se deixar levar pelas gostosas águas soteropolitanas. “É doce morrer
no mar!”, pensa baixinho, lembrando a antiga canção. De repente, um corpo
estranho aparece nadando desengonçado em meio às marolas, enchendo de esperança
o faminto catador de papelão. É um pinguim!
Apressado, o homem entra na água e pega o animal
com facilidade. Leva-o para junto dos seus objetos e passa a usar alguns
papelões para montar uma fogueira. Imediatamente, improvisa uma trempe com
algumas pedras, torce o pescoço do animal que, debilitado, não pode se defender
e o põe para assar.
Mas
já disse algum filósofo que “dia de muito é véspera de nada”. Está o coitado
feliz com a fartura do almoço que se avizinha, quando gritos estrépitos de duas
senhoras melindrosas chegam aos seus ouvidos. “Assassino! Assassino! Você matou
um pinguim! Chamem o IBAMA!”
O miserável faminto assusta-se ao perceber as
mulheres partirem em sua direção e tenta fugir, levando consigo o animal
chamuscado e o fardo de papelão. Surgido de algum lugar, um homem fardado, com
arma em punho, grita-lhe: “Pare se não quiser morrer!”, e corre atrás dele.
O mendigo para. “O senhor está preso por crime
ecológico”, diz o da farda. “Mas eu não cometi crime algum, moço. Eu só estava
querendo comer a comida mandada por Deus pra matar a minha fome”, responde o
coitado, sem entender ao certo o que se passa. “E pinguim lá é comida, seu
animal?”, ofende-o o policial. “Pro senhor pode não ser, mas pra mim era a
única comida que eu ia ter comido nos últimos três dias”, responde o mendigo,
com cara de aborrecido. “Mas isso é um pinguim, seu ignorante!”
“Mas, moço, pinguim é um bicho como outro
qualquer. A gente não mata galinha pra comer? Então, por que eu não posso comer
pinguim? Pra falar a verdade, lá na cidade de onde eu venho, até hoje, eles
matam boi com uma machadada na cabeça e ninguém protesta por isso, não”, ele tenta
convencer o militar. “Mas pinguim não pode e o senhor tá preso e pronto”.
Apavorado, o maltrapilho sai correndo. Surpreso,
o fardado aponta-lhe a arma e o alveja na nuca. O comedor de pinguins cai
fulminado no chão. Em poucos minutos, as duas senhoras melindrosas dão
entrevista a uma emissora de TV, tendo já uma pequena multidão em volta do
falecido.
“O pobre coitado não teve como se defender. O
assassino atirou pelas costas. Onde vamos parar meu Deus!”, dizia uma das duas
senhoras.
Em meio à multidão, observo o mendigo com a cara
enfiada na areia enquanto um pinguim morto e chamuscado parece querer fugir de
sua mão tenaz. Uma pergunta passa a me incomodar: qual o motivo dos pinguins
terem mais prestígio que as galinhas? Na verdade, nós nos acostumamos a fazer
distinção entre coisas e seres, mas, se bem avaliarmos, perceberemos não se
distinguirem. Hoje as nossas leis precisam se dividir na proteção dos negros,
das mulheres, das crianças e dos homossexuais – não seríamos todos iguais? –,
quando o que realmente precisa haver é o cumprimento de uma lei geral,
abraçando a todos como semelhantes e merecedores de proteção e justiça.
Infelizmente, como a “justiça” sempre pende a favor do mais forte, criamos leis
para fortalecer as minorias e de alguma forma fazer-lhes a tal justiça. Assim
surgem o Estatuto da Criança e do Adolescente, as leis em defesa dos negros, a
Lei Maria da Penha, as leis de proteção aos homossexuais, “os estatutos de
proteção aos pinguins e aos tubarões” e tantas outras. Entretanto, apesar de
todas elas, mendigos continuam a dormir debaixo das marquises e crianças
continuam a pedir esmolas nas sinaleiras das cidades. Negros são destratados,
mulheres espancadas e homossexuais agredidos. Enquanto isso, nossos políticos
se locupletam, nossos advogados compram e vendem liberdade e nossa imprensa
insiste em formar opinião. E as leis criadas para proteger as minorias,
passados os dias de empolgação, cairão no esquecimento e, como todas as outras,
perderão sua valia.
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